
Um novo modelo de desenvolvimento para América Latina e Caribe
Em 9 de junho, foi realizada a abertura da primeira turma da Escola de Governo e Desenvolvimento Maria da Conceição Tavares, na sede do BNDES. A escola busca capacitar lideranças entre servidores de bancos públicos, agências de fomento e órgãos estatais afins para desenhar, financiar e executar políticas que impulsionem o desenvolvimento econômico, social e ambiental na região.
Fruto de uma parceria entre o BNDES e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), a escola reforça a colaboração entre as duas instituições, iniciada já em 1953, com o Grupo Misto de Estudos Cepal/BNDE.
O evento de abertura contou com aula magna de Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, José Manuel Salazar-Xirinachs, Secretário Executivo da Cepal e Esther Dweck, Ministra de Estado do Brasil de Gestão e Inovação para o Setor Público.
A seguir alguns destaques do evento.
“Nós estamos atravessando uma crise global de grandes proporções, estamos vivendo um período histórico de grandes transformações” – afirmou Mercadante na abertura de sua aula inaugural.
Um contexto de transformação global: mudanças estruturais em andamento
O presidente do BNDES apontou a existência de algumas mudanças estruturais em andamento e apontou diferentes dimensões dessa transformação que devem ser levadas em consideração ao pensarmos o desenvolvimento hoje.
Crise climática. Eventos extremos decorrentes das mudanças climáticas – como as inundações, deslizamentos e incêndios – estão cada vez mais intensos e frequentes. Mercadante apontou que ao mesmo tempo em que temos os instrumentos para avaliar a crise e desenhar políticas públicas baseadas em evidências cientificas, também estamos enfrentando o negacionismo e retrocessos preocupantes.
Não há perspectiva de recebimento dos recursos prometidos pelos países ricos para o enfrentamento dos problemas climáticos e não temos hoje instituições multilaterais que atuem nas emergências climáticas e na reconstrução com resiliência.
“Precisamos pensar alguma agência – talvez regional, pelo menos, é o que está ao nosso alcance – para construir parcerias e poder enfrentar algumas situações que seguramente vão reaparecer”, afirmou o presidente do BNDES.
Inteligência artificial (IA). Mercadante alertou sobre a necessidade de formarmos quadros que dominem IA rapidamente: “não podemos nos conformar em sermos apenas consumidores; temos que nos colocar o desafio de sermos produtores”. Acrescentou ainda a importância de viabilizar a preservação de nossa tradição, valores, raízes e interpretações históricas por meio da IA regenerativa, de modo a não vivermos um neocolonialismo digital.
Fragilização das instituições multilaterais. As condições e procedimentos que regulavam o comércio internacional estão sendo abandonadas por alguns países, como os EUA: “estamos entrando numa relação comercial unilateral, onde a força se sobrepõe ao pacto de governança e de convivência”, afirmou Mercadante. Segundo ele, no centro desse processo está o desacoplamento entre as economias americana e chinesa, com impacto nas demais economias. Ao mesmo tempo em que abre oportunidades promissoras para exportações agrícolas, cria uma grande pressão sobre a indústria, por conta do excedente de produtos a ser escoado e cuja entrada fere o esforço de conteúdo nacional e de política industrial.
Relação Estado-mercado. “No futuro, para enfrentar e desenvolver novas possibilidades, novas oportunidades, nós precisamos colocar no centro dessa crise a mudança de paradigma da relação Estado-mercado”. Para Mercadante, o mercado é indutor do desenvolvimento, regulador, instrumento de fomento à inovação; o Estado tem papel fundamental no enfrentamento climático, na inovação tecnológica, no fomento à mudança de paradigma tecnológico. O Estado mínimo não vai nos tirar da situação atual. O papel do Estado na articulação, no fomento, no resgate do planejamento é imprescindível para a retomada do crescimento e enfrentamento da crise.
BRICS. Estamos diante da busca de uma nova multilateralidade cuja reconstrução é de interesse do Sul Global e de uma disputa de valores: “talvez a gente tenha que buscar sair dessa visão de vantagens competitivas para impulsionar as vantagens colaborativas”, diz Mercadante. Precisamos buscar uma nova forma de relação entre os países, comerciais e tecnológicas, por exemplo. A crise surge também como uma oportunidade de impulsionar uma multilateralidade mais inclusiva.
Financeirização da riqueza. Temos que enfrentar o acúmulo do endividamento das nações. A pressão da política monetária está no centro da instabilidade do Ocidente e da fragilização da capacidade de produção e inovação: “Temos que recuperar uma relação entre produção e financiamento, e buscar um outro caminho mais sustentável de desenvolvimento”, afirma o presidente do BNDES.
Democracia. A crise global inclui a crise da democracia, que é um regime liberal. “Ela não é só um regime liberal, ela é também um mecanismo de negociação e de incorporação de novos direitos. [...] crise prolongada e essa instabilidade estão comprometendo e fragilizando a democracia”. A desigualdade precisa estar no centro dessa discussão.
Para enfrentar esse cenário adverso, Mercadante destacou a necessidade de recuperar os valores da integração regional, integrando as cadeias de valor e reduzindo assimetrias, avançando na infraestrutura comum, fundamental para fortalecer o comércio inter-regional, e criando mais resiliência na região.
Armadilhas para o desenvolvimento da América Latina e Caribe
José Manuel Salazar-Xirinhach, Secretário Executivo da Cepal, apresentou uma visão geral do documento “América Latina y el Caribe ante las trampas del desarrollo: transformaciones indispensables y cómo gestionarlas” lançado em outubro de 2024 pela comissão. Salazar reforçou, ao longo de sua apresentação, que nenhum país está destinado a se desenvolver: o aproveitamento das oportunidades depende de políticas proativas de desenvolvimento produtivo, atração de investimentos, colaboração e alianças internacionais e regionais.
O documento apresentado por Salazar elenca três armadilhas para o desenvolvimento da América Latina e Caribe:
- Baixa capacidade para crescer e transformar. Por trás de uma taxa de crescimento baixa, não há transformação. Há algumas possíveis causas para o baixo crescimento da região. Entre elas, Salazar destaca três: (i) o baixo crescimento da produtividade e a baixa diversificação produtiva, somado ao (ii) baixo investimento – o menor entre as regiões do mundo – e à (iii) falta de qualificação dos quadros – ao mesmo tempo em que se nota um aumento na escolaridade, sua qualidade vem se deteriorando.
“Cada país, cada território deve pensar quais são os setores mais importantes [..] é preciso fazer apostas setoriais. Uma forma de realmente sair dessa armadilha de baixa capacidade para crescer e transformar é ter rendas produtivas em setores que os países considerem estratégicos, importantes. Essas rendas produtivas têm que ser trabalhadas entre o Estado, lideradas pelo Estado com o setor privado e também com outros setores relevantes para remover os gargalos, fazer os investimentos necessários e desenvolver capacidades competitivas.” – Salazar
- Alta desigualdade. Apesar de alguma redução a partir de 2005, América Latina e Caribe se mantém como a região mais desigual do mundo. Salazar indicou alguns drivers estabelecidos pela Cepal para pensar a desigualdade. São eles: baixo crescimento, baixo dinamismo do mercado de trabalho, heterogeneidade produtiva; sistemas fiscais regressivos, espaços fiscais limitados, sistemas de produção social insuficientes (não permitem financiar as questões sociais adequadamente); sistemas educativos segmentados e de baixa qualidade, sistemas de formação vocacional que não estão à altura dos desafios do século XXI; desigualdade de gênero estrutural e sistemas de cuidado insuficientes; altas desigualdades e segregação espacial nas zonas urbanas (cidades são fábricas de desigualdades) e discriminação e violação dos direitos humanos que sofrem certos grupos da população.
- Capacidade institucional e governança. Avaliando os indicadores mundiais de governança do Banco Mundial, nota-se que América Latina e Caribe estão abaixo dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em todas as variáveis (como estabilidade política e ausência de violência e terrorismo, qualidade regulatória, controle da corrupção, entre outros). É necessário pensar como melhorar a qualidade e a efetividade das instituições.
Como resultado, Salazar aponta as onze grandes transformações estruturais necessárias no modelo de desenvolvimento da região:
Como reflexão final, Salazar lembra que o desenvolvimento é um processo complexo e a longo prazo e não é um destino, mas um resultado de decisões e esforços. Que precisamos pensar em COMO fazer essa transformação: “O desenvolvimento não é um destino, é algo pelo qual se precisa trabalhar, sobre o qual se precisa refletir, para o qual é preciso repensar as estratégias – o mundo também muda, de modo que o que funcionou ontem não necessariamente vai funcionar amanhã”.
Uma nova agenda para o desenvolvimento
A ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, reforçou o tema da economia política trazido por Salazar e apontou o ciclo de poder e dinheiro como um dos grandes desafios para os projetos transformadores da região. Esther deu o exemplo das cotas universitárias e da resistência à separação da elite intelectual da elite financeira brasileira, apontando a luta contra a dupla “poder e dinheiro” como fundamental para a transformação necessária.
Inspirada na frase de Maria da Conceição Tavares – “O método que utilizo é sempre histórico-estrutural” – a ministra apontou a necessidade de entender a nossa realidade e suas amarras para transformá-la.
Esther reforçou, com base nos ensinamentos da professora Maria da Conceição Tavares, a importância de entender o momento e como nos inserimos no mundo para então agirmos soberanamente para mudar essa realidade.
Resumiu como alguns desafios da transformação atual: o dinamismo do crescimento econômico – um dos elementos importantes para o desenvolvimento, mas não suficiente para garanti-lo –, a persistência da pobreza e desigualdades, a rigidez estrutural e desindustrialização como tendência e os investimentos para enfrentar as mudanças climáticas. Contextualmente, esses desafios ocorrem num momento de incerteza em relação à conjuntura internacional, de disputa hegemônica e de seus impactos sobre os países periféricos e de ameaça de ruptura democrática e pressão para a redução do Estado.
Segundo a ministra, “a gente precisa de um crescimento econômico sustentado e precisa de uma mudança estrutural em três frentes importantíssimas – estrutura produtiva e tecnológica, redução das desigualdades sociais e sustentabilidade ambiental – que vão gerar o desenvolvimento sustentável e inclusivo”.
Cada uma dessas questões depende de políticas públicas: o crescimento econômico sustentado depende do estímulo à demanda agregada e de investimentos de longo prazo; a estrutura produtiva e tecnológica passa pela transformação digital e inovação no setor privado brasileiro; a redução das desigualdades vem sendo combatida por meio de proteção social e promoção social com oferta de serviços públicos; e a sustentabilidade ambiental depende de política ambiental e infraestrutura verde.
Esther Dweck aponta para a necessidade de um Estado “empreendedor, apoiador, indutor, estratégico e voltado para o público”, com instituições públicas que se adaptem e inovem de modo a antecipar cenários, tendo como foco a redução de desigualdades de gênero e raça.
A ministra indicou que uma agenda para o Brasil, inspirada em Maria da Conceição, teria como base: o reconhecimento das particularidades históricas e da forma de inserção internacional; a centralidade da demanda efetiva e da dinâmica cíclica, associada à complexidade do processo de acumulação na era da financeirização; a noção de que o Brasil nunca deu saltos senão com impulsos do próprio Estado; e a retomada da centralidade da política social como elemento definidor da dinâmica econômica.
A ministra indicou as três grandes frentes em que o ministério vem trabalhando:
“Nossa ideia é aumentar a eficiência e principalmente a efetividade do Estado com diálogo permanente com a sociedade e aumentando a diversidade: essa é a nossa missão” – afirmou a ministra.
Confira a aula em nosso canal no YouTube.
Conteúdo relacionado
Um panorama dos bancos e instituições financeiras de desenvolvimento
O BNDES no contexto global: uma análise comparativa com bancos de desenvolvimento
Como o crédito à exportação contribui para o desenvolvimento?